Vou publicar a partir de agora, textos extraídos de obras que são consideradas verdadeiras pérolas da literatura mundial. Apresentam temas polêmicos, críticas, situações de refinado humor, que servirão para novos conhecimentos através de saudáveis e divertidas páginas literárias. E assim, nada melhor que um exemplar texto de Voltaire, selecionado de seu famoso conto "Os ouvidos do Conde de Chesterfield e o Capelão Goudman", onde permanece clara e latente a posição anti-monárquica do filósofo. O estilo crítico e divertido de Voltaire - às vezes contundente - espelha sua aversão ao autoritarismo. Foi, junto a D'Alembert e Diderot, precursor da Revolução Francesa, que culminou com a queda da monarquia.
Bom proveito. Comentem, enviem sugestões!
OS OUVIDOS DO CONDE DE CHESTERFIELD E O CAPELÃO GOUDMAN
VOLTAIRE –
CAPÍTULO VII
No
dia seguinte os três filósofos abordaram a grande questão: qual o primeiro
móvel de todas as ações dos homens. Goudman, a quem sempre lhe doera a perda de
seu cargo e da sua bem amada, disse que o princípio de tudo era o amor e
ambição. Grou que vira mais terras, disse que era o dinheiro; e o grande
anatomista Sidrac assegurou que era a privada. Pasmaram os dois convivas e eis
como o sábio Sidrac provou a sua tese:
-
Sempre observei que todos os negócios deste mundo dependem da opinião e da
vontade de um principal personagem, seja o rei, o primeiro-ministro, ou alto
funcionário. Ora, essa opinião e essa vontade são o efeito imediato da maneira
como os espíritos animais se filtram no cérebro e daí até a medula alongada;
esses espíritos animais dependem da circulação do sangue; esse sangue depende
da formação do quilo; esse quilo elabora-se na rede do mesentério; esse
mesentério acha-se ligado aos intestinos por filamentos muito delgados; esses
intestinos, se assim me é permitido dizer, estão cheios de merda. Ora, apesar
das três fortes túnicas de que cada intestino está revestido, é tudo perfurado
como uma peneira; pois tudo na natureza é arejado, e não há grão de areia, por
imperceptível que seja, que não tenha mais de quinhentos poros. Poder-se-ia
passar mil agulhas através de uma bala de canhão, se as conseguíssemos
bastantes firmes e bastante fortes. Que acontece então a um homem com prisão de
ventre? Os elementos mais tênues, mais delicados da sua merda se misturam ao
quilo nas veias de Asellius, vão à veia-porta e ao reservatório de Pecquet;
passam para a subclávia; penetram no coração do homem mais galante, da mulher
mais faceira. É uma orvalhada de bosta que se espalha por todo o corpo. Se esse
orvalho inunda os parênquimas, os vasos e as glândulas de um atrabiliário, o
seu mau humor se transforma em ferocidade; o branco de seus olhos se torna de
um sombrio ardente; seus lábios colam-se um ao outro; a cor do rosto assume
tonalidades baças. Ele parece que vos ameaça; não vos aproximeis; e, se for um
ministro de Estado, guardai-vos de apresentar-lhe um requerimento; Todo e
qualquer papel, ele só o considera como um recurso de que bem desejaria lançar
mão, segundo o antigo e abominável costume dos europeus. Informai-vos
habilmente de seu criado se Sua Senhoria defecou pela manhã.
Isto
é mais importante do que se julga. A prisão de ventre tem produzido, às vezes,
as mais sanguinolentas cenas. Meu avô, que morreu centenário, era boticário de
Cromwell; contou-me muitas vezes que fazia oito dias que Cromwell não ia
à privada quando mandou degolar o seu rei.
à privada quando mandou degolar o seu rei.
Todas
as pessoas um pouco a par dos negócios do continente sabem que o Duque de Guise
várias vezes avisado de que não incomodasse a Henrique III no inverno, enquanto
estivesse soprando o nordeste. Em tal época era com extrema dificuldade que o
referido monarca satisfazia as suas necessidades naturais. Suas matérias lhe
subiam à cabeça; era capaz, então, de todas as violências. O Duque de Guise não
levou a sério tão avisado conselho. Que lhe aconteceu? Seu irmão e ele foram
assassinados.
Carlos
IX, seu predecessor, era o homem mais entupido do reino. Tão obstruídos estavam
os condutos de seu cólon e de seu reto, que por fim o sangue lhe jorrou pelos
poros. Bem se sabe que esse temperamento adusto foi uma das causas da matança
de São Bartolomeu.
Pelo
contrário, as pessoas que têm bom aspecto, as entranhas aveludadas, o colédoco
fluente, o movimento peristáltico fácil e regular, que todas as manhãs, depois
de comer, se desobrigam de uma boa evacuação, tão facilmente como os outros
cospem; estas pessoas favoritas da natureza são brandas, afáveis, graciosas,
benevolentes, serviçais. Um não na sua boca tem mais graça do que um sim na
boca de um entupido.
Tal
é o domínio da privada, que uma soltura torna muita vez um homem pusilânime. A
disenteria tira a coragem. Não convideis um homem enfraquecido por insônia, por
uma febre lenta e por cinqüenta dejeções pútridas, para atacar um posto inimigo
em pleno dia. Eis porque não posso acreditar que todo o nosso exército
estivesse com disenteria na batalha de Azincourt, como dizem, e que alcançou a
vitória de calças na mão. Alguns soldados teriam ficado com soltura por haverem
abusado de maus vinhos no caminho; e os historiadores teriam dito que todo o
exército, enfermo, bateu-se de bunda de fora, e que, pra não mostrá-las aos
peralvilhos franceses, bateu-os redondamente, segundo a expressão do jesuíta
Daniel. E eis justamente como se escreve a História.
Voltaire, François Marie Arouet –
Contos – Tradução Mário Quintana – 1ª edição –
Ed. Abril Cultural – (Com licença da Editora Globo, S.A. – Porto
Alegre). Maio 1972 – São Paulo.